Para o professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), Marcelo Nerling, que participou na noite de quarta-feira (16) do projeto “Debate Contemporâneo”, da Escola do Legislativo Lício Mauro da Silveira, a crise econômica passará, e a saída é fortalecer o Estado Democrático de Direito, com vontade de Constituição.
O professor, que falou por cerca de uma hora e depois respondeu os questionamentos da plateia, com a mediação do gestor do Núcleo de Formação de Agentes Públicos e Políticos da Alesc, Paulo Wilpert, destacou inicialmente os conceitos de ‘crise’ e de ‘política’, para então observar a crise política brasileira.
No tocante a política, fez um esforço para superar a dicotomia ‘esquerda’ x ‘direita’, optando por chamar atenção de três velhos princípios liberais, fundadores do atual estado constitucional: liberdade, igualdade e fraternidade. Chamou atenção e induziu os ouvintes à reflexão sobre o fato de que, “quanto mais liberdade, ou mais liberdade de alguns, menor a igualdade”, destacando ainda que “quanto maior a igualdade, menor a liberdade”; é nesse “mal-estar civilizatório, que vivemos os dias do tempo presente”, considerou o Professor Nerling. O tempero, no dizer do professor Nerling, é a fraternidade.
Sobre a crise política brasileira, o palestrante entende ser esta a “mãe da crise econômica”, resulta que, “em 2014 o indicador do desemprego era 4,3% da população economicamente ativa, três anos depois, temos 13% dessa população desempregada ou subempregada;jogamos quatro milhões para a miséria, e temos que resgatar ações como a Ação da Cidadania, propostas pelo saudosoBetinho”.
A crise política brasileira, também sofre influencias do que o Professor Nerling chamou de ‘revolução constitucional’, estribada em tinkttanks. São“influências ideológicas, que nascem no mundo das ideias e se tornam orgânicas, a impactar esse nosso mundo novo, globalizado, que não permite pensar a política interna alijada da política externa. Um Estado menor, mais fraco, nem prestador e nem regulador, permite ao seu povo sofrer maior pressão, a mesma que se dá sobre a organização dos poderes, responsáveis pela manutenção ou pela destruição de direitos. O Legislativo e o Judiciário, nesse contexto, são alvo.
A atual crise política, iniciada em 2014, é o epicentro da crise econômica e social que estamos atravessando. O capitalismo se alimenta de crises, porque permite a concentração do capital, logo, como não há crise continuada no capitalismo, é óbvio que vamos sair dessa, disse o Professor.
“A economia do ano que vem, terá a medida de nossa acreditação, e será o que fizermos dela”, explicou o professor.“A saída está na Constituição, no fortalecimento do Estado Democrático de Direito. É preciso fortalecer esta ideia e transformá-la em sentimento de fraternidade; a saída está em zonas convergentes, não em zonas antagônicas, conflituosas, por meio da mediação dos conflitos. Por isso é tão importante a pergunta: o que nos unifica no Brasil? Que visão temos do nosso país? Qual é o senso de Nação, que nos empodera a dizer que somos o quinto maior contingente populacional do globo, com 200 milhões de habitantes, com riquezas naturais, minerais, energéticas”, argumentou.
O lado perigoso da crise
O professor alertou para o fato de que nos períodos de crise, surgem as “soluções mágicas”, favorecidasporideias ediscursos de ódio, de intolerância, próprios de uma era de extremos como a que estamos a atravessar, na qual os fatores da ‘cor, religião, extrato social, opção sexual’, são estopins, como o história mostra ao contar do nazismo como uma“solução mágica” que se materializou no“nacional socialismo”, e até hoje muitos não têm clareza no enquadramento desse movimento no espectro tradicional do que chamamos“esquerda ou direita”, quando foi um movimento explícito de“extrema direita, que perseguiu comunistas, negros e judeus”, explicou.
Conspiração internacional ou revolução constitucional
O professor convidado chamou atenção, para o que definiu como uma “revolução constitucional”, fundada “não em uma teoria de conspiração internacional”, pelo contrário, são ideias a influenciar mudanças no ordenamento jurídico, o que requer pressão e influencia acentuada sobre o legislativo e o judiciário dos diversos países.
Todos nós vivemos em um sistema econômico, que condiciona a política e a sociedade, e funciona para favorecer 1% da população mundial; esse 1% dos mais ricos possui mais riqueza que 99% da população restante do planeta. “Isso é um fato”, diz o Prof. Nerling.
Esse não é um fenômeno “natural”. É preciso “financiar gente que pensa, e a partir de aí produzir teorias e transforma-las em alteração no mundo jurídico, no direito, legitimador da dominação moderna”, além da influência da mídia,na opinião pública, mundo afora.
“Sem a blindagem do estado, as ondas ideológicas chegam de forma avassaladora. Elas operam na regulação, e na desregulamentação, no sentido de desconstruir o estado de bem-estar social, querem acabar com o Estado, promovendo ações que façam as pessoas desacreditarem no Estado, ampliando a liberdade daqueles 1% mais ricos, e para o ‘resto’, os 99%, o que sobra é desemprego, precariado, imprevidência, pobreza, poluição da água, comida e ar, insegurança. É preciso construir pontes entre a sociedade civil e a sociedade política, porque os problemas da democracia se resolvem com mais democracia, e o caminho não é o retorno ao estado de natureza”.
Essa revolução constitucional é fática, ela pode ser observada nos movimentos de privatização e cobrança de taxas nas universidades, na privatização da seguridade social, no rompimento dos laços entre os cidadãos e o governo, na demolição da confiança nas instituições republicanas, tudo para “salvar o capitalismo da democracia”. Essa é uma ideologia que vem sendo colocada em prática e dependem do sigilo corporativo, que não revela seu objetivo último, antes, age por meio de etapas sucessivas, a destruir o sistema de seguridade social com o argumento de que o estão salvando, que ele quebraria sem uma série de “reformas” radicais.
Esse programa, que não é teoria da conspiração, e sim um programa articulado em torno de ideias, construíram uma “contra inteligência”, articulando uma “vasta rede de poder político”, constituindo um novo establishment e uma nova hegemonia. Há um conflito inerente entre a “liberdade econômica” e a “liberdade política”. Ao deixar os bilionários de mãos livres, sobra para todos os demais, pobreza, insegurança, contaminação das águas e do ar, colapso dos serviços públicos. A ilusão ou controle autoritário é que pavimentam essa escolha, entre o capitalismo irrestrito e a democracia. Para os supre ricos, não se pode ter os dois.
Esse pano de fundo serve como argumento para o mal que o poder econômico gera à política, entendida essa como a arte do possível, a ciência da organização da ação individual e social, uma atividade com sentido, orientada ideologicamente para a tomada de decisão e resolução de conflitos de interesse. Esse fato, só incrementa a crise política, e não é diferente no Brasil cuja agenda legislativa consiste essencialmente nesse elemento que ingenuamente são desconhecidos.
Distritão
Nerling criticou a intenção dos deputados federais e senadores de criarem o distritão, sistema que transforma os estados em um único distrito eleitoral, modificando a eleição à Câmara dos Deputados e às assembleias legislativas de proporcional para majoritária.
“O distritão vai reduzir o poder do partido para fortalecer o voto singular dos legisladores, é mais um remendo numa colcha interminável de retalhos, (os políticos) não estão vivendo para a política, mas da política, e aqui não estamos falando de esquerda ou direita”.
O palestrante também chamou atenção para o número de partidos políticos no Brasil, lembrando que temos 35 partidos registrados no TSE, e mais 28 em vias de abertura. Lembrou ainda, que nesse ano, a mudança de nome dos partidos, também tem chamado atenção, o que não contribui para a melhoria do sistema e pode prolongar a crise, que depende de uma verdadeira reforma política, e não de uma colcha de retalhos.
Crise do sistema carcerário
O professor de Gestão de Políticas Públicas da USP destacou o tema da violência, como uma consequência das decisões políticas, sobremaneira aquelas que desregulamentam o estado social de direito.
Chamou atenção para a situação caótica do sistema carcerário e comparou a situação do Brasil com a guerra civil na Síria.“O Brasil é o quarto país em número de encarcerados, quase 700 mil presos que custam em média R$ 30 mil por ano, enquanto um aluno na escola custa R$ 3 mil. Na Dinamarca e na Noruega o preso pinta e borda, literalmente. Aqui estamos matando mais gente dentro da cadeia porque não damos saúde básica para essas pessoas.
Das quase 60 mil mortes por ano (a cada cinco anos temos uma Síria), chegam ao Poder Judiciário como processo, apenas 8% dos casos, 92% não têm autoria identificada”. A impunidade gera a desacreditação do cidadão no governo e no próprio Estado. O professor destacou que nossos pré-conceitos não permitem perceber que, por exemplo, “grande parte dos presos por porte de drogas ilícitas, caiu com menos de 10 gramas de maconha – talvez com algum desvio para filho de juiz ou senador – mas se for preto e pobre, a sanção custa para a sociedade cerca de R$ 30 mil reais por ano, quando o objeto do crime vale a bagatela de R$ 50 reais.
"O Uruguai vendendo maconha nas farmácias, o Canadá, EUA, Portugal, Suíça, com políticas públicas de drogas que superaram a guerra às drogas que adotamos no Brasil, e nós metendo a garotada no xadrez para que aprendam com os ladrões de bancos e com os latrocidas”, lamentou o professor.
Chamou atenção para o fato de que a crise política é, e será cada vez mais, refém não só da pressão ideológica neoliberal do mais ricos, mas do crime organizado, que tem no tráfico de drogas o seu mais forte ativo e que nós insistimos em não fazer dele um monopólio estatal.
Após a palestra, vieram os debates. Entre o público que lotou o auditório, foram levantadas quase uma dezena de ponderações e questionamentos, todos, significativos e pertinentes com relação ao tema da crise política no Brasil. Entre os temas: juventude; força física do Estado e sua utilização como braço político; modelo de Estado; papel da mídia; importância da educação que prepara para a cidadania; crime organizado; judicialização da política.