Para especialistas, pandemia causou subnotificação dos casos de pedofilia

8 de julho de 2021

Em 2019 foram registrados no estado 1.107 boletins de ocorrência por estupro de vulnerável (cometidos contra pessoas entre 0 e 14 anos), número que caiu para 1.042 em 2020, e para 973 em 2021. Apesar de indicarem um fato positivo, os dados provavelmente sugerem apenas que o isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 impediu a denúncia de grande parte das agressões ocorridas em território catarinense.

O alerta foi apresentado na manhã desta quinta-feira (8), na Assembleia Legislativa, em meio a uma mesa-redonda que tratou do enfrentamento da pedofilia e que reuniu profissionais de diversas áreas que compõem a rede de proteção à criança e ao adolescente no estado. Promovido pela Escola do Legislativo Deputado Lício Mauro da Silveira e pela Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, o evento teve por meta dar visibilidade à Semana Estadual de Combate à Pedofilia em Santa Catarina, instituída por meio da lei estadual 16.878, de 2016.

“Este momento é especial para debatermos um tema muito difícil ainda de se discutir, mas muito necessário. Precisamos falar sobre pedofilia, pois só a informação, a troca experiência e a conscientização, pode combater esse drama que afeta milhares crianças e suas famílias”, disse a deputada Marlene Fengler (PSD), que preside a Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e coordenou os debates realizados.

Conforme a parlamentar, a média de notificações de violência sexual contra jovens no estado beira 3,8 mil por ano. Citando levantamento da ONG Safernet Brasil, ela afirmou ainda que, somente em março de 2020 – primeiro mês de isolamento por causa da pandemia – os casos de pedofilia virtual aumentaram em 190% e os acessos em sites de pornografia infantil subiram quase 70%. “É nossa responsabilidade combater essa violência. Ainda que não possa ser extinta totalmente, mas para que possa ser reduzida ao máximo.”

Outros dados que suscitaram preocupação envolvem os flagrantes de armazenamento de imagens pornográficas de menores, que de 34 no primeiro semestre de 2020, subiram para 39 no mesmo período de 2021, conforme destacou Patrícia Zimmermann D’Avila, que coordena as 31 Delegacias de Polícia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcamis) em Santa Catarina. “As crianças estão em mais casa, por isso estão mais sujeitas a essa vulnerabilidade”, explicou.

Ela disse ainda que a grande maioria dos casos de pedofilia é praticada por pessoas do próprio círculo social da vítima, sobretudo por familiares. “Sou delegada há 23 anos e já atendi a inúmeros casos de estupros de vulneráveis. Destes, apenas três casos não foram praticados por pessoas próximas às vítimas.”

De acordo com ela, as crianças têm muita dificuldade em relatar os casos e a escola e os professores costumam ser um canal para as denúncias. A Polícia Civil, entretanto, tem buscado ampliar os seus meios de contato, além do número de telefone (181), agora há também o WhatsApp (48988440011). Ambos funcionam 24 horas, ininterruptamente.

“Toda denúncia de violência que vêm por esses números é investigada, em qualquer canto, em qualquer cidade, em qualquer lugar de Santa Catarina. É um compromisso da Polícia Civil em investigar e combater a exaustão esse crime tão grave.”

Marcas na vida adulta
Uma das falas mais aguardadas foi o da escritora, educadora e palestrante Maura de Oliveira, que dá nome à Lei Estadual 9.234/2021, de Combate e Prevenção à Pedofilia, Cyberpedofilia, Abuso e Exploração Sexual Infantil, do Estado do Rio de Janeiro. Ela fez um relato dos abusos sexuais e maus-tratos que recebeu após ser tirada da mãe biológica, aos 4 anos de idade. A violência, disse, foi praticada em meio à família de adoção, pelo pai, militar, e com a concordância da mulher, assistente social. “Não existe classe social para abusador, que pode estar mesmo entre pessoa letradas e de nível elevadíssimo.”

A violência recebida na infância, ensinou, repercute pelos anos seguintes da pessoa e pode, inclusive, ocasionar problemas psicológicos severos. “Somos o quarto país do mundo em suicídio infanto-juvenil. Isto é muito grave e não podemos mais colocar esse tema debaixo do tapete.”

Ela frisou ainda que é preciso que o poder público promova a discussão do assunto na sociedade e ofereça os meios para coibir a violência praticada contra os mais jovens. “Precisamos reconhecer que há brechas na educação, reeducar as famílias para que elas possam educar suas crianças.”

Iniciativas municipais
Em meio aos debates, também foram apresentadas iniciativas desenvolvidas nos municípios para incrementar a rede de proteção às crianças e adolescentes vítimas de violência. A psicóloga Ana Brasil de Oliveira, falou do trabalho desenvolvido na Secretaria de Educação de São José, onde coordena o Programa de Manejo e Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes.

A ação, disse, surgiu em 2010, em parceria com a UFSC, e visa orientar e preparar os educadores do município a identificarem entre seus alunos casos de violência e encaminharem as vítimas a outros profissionais que compõem a rede. “Quem não sabe o que procura, não vê quando o encontra”, ensinou.

O município, disse, também busca manter um trabalho de esclarecimento da população visando prevenir os casos de violência infantil. “Seja o psicólogo atuando na educação ou o pai que está saindo para trabalhar e volta todo dia às 8 horas da noite, não existe momento, não existe tempo e não existe horário para trabalhar a prevenção contra a pedofilia. Esse trabalho é um dever de todos nós, e continuamente.”

Já a psicóloga e assistente social Patrícia Carmem Rodrigues discorreu sobre o trabalho realizado no Centro de Atenção à Criança e ao Adolescente em situação de Violência Sexual (Caves), também no município de São José. A instituição, disse, iniciou as atividades em 2019 e atualmente conta com uma equipe formada por dois psicólogos e uma assistente social, que prestam suporte às vítimas de violência.

Ao todo, já foram atendidas 261 crianças e adolescentes, sendo que 30 demandaram encaminhamento para quimioprofilaxia, cuidados que visam impedir o desenvolvimento de uma doença, infecção, ou mesmo de gravidez. Para que o atendimento tenha sucesso, também é necessário o envolvimento da família da vítima.

“A gente faz o acolhimento com a família para verificar se esses encaminhamentos atingiram seus objetivos, ou não. Quando não, a gente novamente faz o acionamento desses serviços da rede para que a criança possa ter garantida a proteção dela e o atendimento devido”, explicou Patrícia.

Outro trabalho realizado pelo Caves de São José é a capacitação dos profissionais de saúde do município para que saibam reconhecer na criança sinais que possam indicar algum tipo de violência recebida. Entre eles, podem figurar choro sem motivo, irritabilidade frequente e sem causa aparente, tristeza constante, demonstração de desconforto, perda do desenvolvimento físico e intelectual, distúrbio no sono, comportamentos extremos como agressividade, medos, baixa autoestima, uso de álcool e drogas, e até casos de mutilação e desejo de morte. “Hoje podemos contar com o profissional do posto de saúde e qualquer uma dessas características pode sim ser atendida pela equipe estratégia de saúde da família.”

Representando o conselho tutelar de Florianópolis, Jocemar Santos de Oliveira reforçou a importância do trabalho de prevenção contra a violência já no ambiente familiar. “Como sociedade não podemos nos omitir. Se quisermos mudar essa realidade da pedofilia, e de tantos outros males, precisamos entender que a família é o local ideal para tratarmos isso. Trabalhar na formação das famílias, pois os pais não são treinados para educar seus filhos.”